sábado, 24 de setembro de 2016

Versão online do E-book "Ainda resta a poesia"

Ainda resta a poesia


APRESENTAÇÃO

            As poesias deste livro foram escritas entre 2011 e 2016. Elas exprimem as experiências do autor na sua relação com o mundo durante esse período em que se graduou, se casou, se tornou pai, amadureceu seu discurso e intensificou sua militância.
            A poesia é uma de suas armas, nelas o autor denuncia, desaprova, critica e questiona inúmeros temas que vão desde o amor até a política. As palavras são importantes, pois elas induzem uma reflexão no leitor. Os versos não são apenas combinações sonoras de palavras bonitas, mas provocam o leitor a ir além.
            Acredito que o leitor se identificará com algumas das poesias e sentirá prazer em lê-las ou até mesmo recitá-las. Desejo uma boa leitura e não se esqueça que quando nada mais restar, ainda restará a poesia.

Ana Paula Lucinari
Professora - Historiadora


PREFÁCIO

Escrever este livro foi uma experiência magnífica e intensa. Imagine que enquanto eu digitava cada uma dessas poesias num laptop em casa, ouvia gritos, choros ou risadas da minha filhota. Muitas vezes deixei o editor de texto de lado pra dar atenção a ela, que é a razão da minha vida. Sim, as letras são quase todas sobre ela, e sobre minha esposa, são para elas, formamos um belo trio. São também sobre meus medos, meus anseios, minhas incertezas e minhas razões.
Ocorria que no primeiro semestre de 2015 a Aninha lecionava numa escola na zona norte da periferia de São Paulo no período noturno. Quando eu a buscava, esperava na sala dos professores rascunhando num velho caderno. Foi ali que escrevi os primeiros versos deste livro, escrevi os outros no ano seguinte, e os últimos num clima um tanto eufórico do momento político no nosso país em meados de 2016 quando participei de protestos nas ruas de São Paulo.
É o relato poético fiel desse período em particular. Já escrevi muitas canções, mas essas letras são exclusivas deste contexto onde eu esperava minha esposa para irmos pra casa ver a Pietra, nossa “pedra iluminada...”. Com exceção de “Dono da verdade” e “Eu acredito no paraíso” que escrevi antes da faculdade, momento em que me aproximava do evangelho na mesma medida em que me afastava da igreja enquanto instituição formal (por mais contraditório que isso pareça), as demais letras surgiram numa sala cheia de mariposas, e pensando sobre política, religião e sociedade, áreas em que sofro minha metamorfose idealista constante.
Nos momentos em que eu esperava pelo meu amor, mil pensamentos corriam pela minha cabeça. Eram dúvidas, questionamentos, decisões a tomar, certezas a aceitar, e cada um dos dias em que me senti inspirado eu escrevi. Outros dias eu ouvia músicas num velho aparelho mp3, ou lia algum livro interessante geralmente sobre história.
Ah sim, meu nome é Francisco, mais conhecido como Kiko Pietro. No início de 2012 ingressei num curso de licenciatura em História e lá conheci a Aninha. Menos de um ano depois nos casamos e logo chegou prematuramente nossa princesa Pietra. Entrei na faculdade pra estudar, saí de lá casado e pai.
Fiz novos amigos, tive notas melhores do que esperava, e ainda fui o orador da minha turma no dia da formatura, bizarramente o universo conspirou ao meu favor nesse sentido. Isso teve um alto preço, tudo que não era relacionado a isso eu perdi. Mas e daí? Não é comparável ao que ganhei. A vida foi muito generosa comigo, de modo que em três anos eu vivi o que muitos não vivem em dez. Espero musicar algumas dessas poesias num futuro próximo, talvez formar uma nova banda, não sei. Por ora é isso, espero que gostem.

Kiko Pietro
Setembro, 2016

   
DEDICATÓRIA

Para minha esposa companheira e guerreira, minha filha preciosa princesa, meus pais o exemplo, minha sogra parceira fiel e paciente, meus amigos militantes utópicos esperançosos e fortes idealistas, meus irmãos convictos, e principalmente ao meu sogro pelas conversas mais maravilhosas da vida e sobre a vida nesses últimos anos.



ÍNDICE
1 - Dono da verdade
2 - Eu acredito no paraíso
3 - No fundo...
4 - Rock com ballet
5 - Inversão
6 - Pedra iluminada da selva
7 - Primavera
8 - Paz
9 - Dois dentinhos
10 - Pra sempre
11 - Divindade
12 - Herói
13 - O rebelde, o revolucionário, e a liberdade
14 - O que sei
15 - Na sala com as mariposas
16 - Você
17 - Máscaras
18 - À parnasiana
19 - Casinha na ladeira
20 - Quem é esse cara então?
21 - Herege
22 - Febre alta
23 - Teoria da história
24 - Vento e fogo
25 - Camomila
26 - Telefone
27 - O piano e o tambor
28 - Amplificação
29 - Em canções
30 - Labuta
31 - Arte cristã contemporânea
32 - Ciclos
33 - Liberdade
34 - Acordei
35 - Desejo
36 - Enquanto
37 - Esperança
38 - Politicagem
39 - Além dos ritos
40 - Quem eu sou
41 - Próximo
42 - Leia antes do mundo acabar
43 - Antes do fim
44 - Ainda resta a poesia


1 - Dono da verdade

A escuridão não existe, só existe onde a luz não chegou
A escuridão não existe, é uma prisão da sua imaginação
A escuridão não existe, é um estado de alienação
A escuridão não existe, deixe a luz brilhar

Uma luz brilhou e mostrou tudo que há
Bom ou mau não sei, cada um sabe o que fez
Cada um tem suas leis, cada um tem seu lugar
Certo, errado, sei lá, cada um quem vai pagar

Eu não tenho muita fé
Nem tenho muita esperança
Mas eu tenho muito amor
Sei que parece contraditório
Fazer essas comparações
Mas o amor é maior
Eu não tenho muita fé
Eu não me apego nas coisas que ainda não são
Não tenho muita esperança
Não espero pelo amanhã
Eu vivo o hoje fazendo o que acredito
Já esperei tantas coisas que cansei
Então eu concentro minhas forças no agora
E só me importa é fazer o bem

Eu não sou dono da verdade
É a verdade que é dona de mim
Eu não conheço outra realidade
Só a verdade conduz à liberdade


2 - Eu acredito no paraíso

É como um jardim fechado
Talvez como um jardim da Pérsia
Na terra ou então celeste
Quem sabe um jardim no Éden

É o terceiro céu, talvez sabor de mel
Pra quem fez boas obras, ou pra quem é fiel
Qualquer religião, judeu, cristão, pagão
Quem sabe é utopia, quem sabe é razão

Talvez seja a paz na terra
Um mundo livre sem mais guerras
A evolução de toda era
Em uma parte ou em toda esfera

É pra o ladrão na cruz, na morte viu a luz
É pra quem acredita num mundo bem melhor
Se é físico, real, se é imaginação
Estado de espírito, ou na palma da mão

Eu acredito no paraíso, eu acredito
Transcendental, eu acredito
Orgástico, eu acredito
Celestial, eu acredito
Cósmico, eu acredito


3 - No fundo...

Abro a janela, ouço a panela cair no chão
A vida é bela e o paraíso cabe na mão
Conto com ela, nunca sem ela, em breve feijão
Era um sonho, hoje com sono, televisão

Fiz tantos planos, tantos tamanhos, só pra depois refazer
Tantos enganos, mas muitos ganhos, três vidas para viver
A estrada é longa e a hora passa, mas eu preciso chegar
Nunca desisto, as vezes conflito, esse é o segredo de amar

O apocalipse não faz sentido, só cada dia o que há
Mesmo sem pressa o tempo passa, não dá mais pra retornar
Um dia chega e ela decide qual o caminho a tomar
Olho no olho, nunca o adeus, um dia ela deve voltar

Nem sempre encontramos as respostas
E as horas se aceleram encurtando os dias bons e maus
Nem tudo aprendemos na escola
É a vida nos mostrando que no fundo somos todos sós


4 - Rock com ballet

Escrevi esses versos com pressa
Antes de você se levantar
Eu queria fazer uma surpresa
Pra celebrar o nosso amor

Dizem que somos tão parecidos
E que amar assim é egoísmo
Mas coisas simples como o amor
Não seguem uma lógica

E quando eu cantar essa canção
Enquanto eu tocar o violão
Você vai voar com os pés no chão
E juntos vamos fazer

A trilha sonora do nosso amor
Em cada compasso musical
Mesclando um rock com ballet
Porque é assim que a gente é

Diferentes tão parecidos
Responsáveis, mas divertidos
Somos os céticos que tem mais fé
Pois é assim que a gente é

Tão exatos e tão humanos
Pra uns heróis, pra outros vilões
Um paradoxo de emoções
Pois é assim que a gente é...
Feliz


5 - Inversão

Okay, vamos falar de valores
Amores, doutores, favores
Motivos pelos quais vale a pena lutar
Já sei, podemos falar de destinos
Desígnios que desde meninos
Lugares que talvez ainda vamos chegar

Então vamos lá, vamos começar
Deixa prosseguir para conseguir
Porque se ficar do jeito que está
Dá pra imaginar aonde vai parar

Só reclamação, mas pouca ação
Muita discussão, sem muita razão
Há tanto barulho que não dá pra ouvir
E tanta fumaça que não dá pra ver

É politicagem, é religião
É só distração, não é revolução
São tantos caminhos, mas não vão chegar
À lugar algum porque não sabem pensar

Vamos inverter a situação
Ver além do espelho, além da ilusão
Trocar tradições e sempre acreditar
Que o jeito certo é poder pensar que

A razão não deve ser só racional
E o sentimento não é só do coração
Então vamos ver como vai ficar
Bora, bora ver que sentido que dá, assim:

A razão é do coração e o sentimento é da mente
Vamos inverter só por um segundo
E ver se assim alguém entende


6 - Pedra iluminada da selva

E foi assim que aconteceu
Da maneira mais improvável possível
Eu encontrei com ela naquele corredor de mármore frio
Caminhávamos todas as noites pela selva de pedra
Eu disse logo quem eu era
E ela se assustou um pouco e sorriu
Mas nada como a verdade pra ganhar
Ou perder alguém logo de vez
Foi numa encruzilhada que nossos lábios se tocaram
E pela primeira vez eu soube que dali pra frente
Nossa história estaria entrelaçada pra sempre
Trocamos votos e ganhamos uma bela festa
Com direito a poesias, músicas, danças e bênçãos
De presente, uma lua de mel perto da cachoeira
Num desses lugares onde os insetos
Fazem uma orquestra a noite
Voltamos aos corredores de mármore frio
Mas nosso amor nos aqueceu e nos fez brilhar
Até que depois de um tempo ganhamos uma linda pedra
Uma pedra forte e preciosa, cheia de luz
Luz que iluminou a nossa selva
Luz que nos mostrou a direção
Pedra iluminada da selva, pra sempre em nossas mãos
Pedra iluminada da selva, amor, colo e mingau
Pedra iluminada da selva, presente de natal
Pedra iluminada da selva...
E foi assim que aconteceu


7 - Primavera

É tão dolorido e é tão escuro
Estou deprimido e em cima do muro
Não sei se sou eu, não sei se é o mundo
Só sei que não sei, não vejo e estou mudo

Mas posso escutar o meu coração
Ainda bate forte, vou continuar
Não posso parar, meus pés estão no chão
Há tantos caminhos, ainda posso sonhar

A chuva é tão fria, não tive abrigo
Quando me machucaram, não tive ombro amigo
Meu mundo caiu, perdi os sentidos
Mas rasgou-se o véu e eu vi o infinito

Além das coisas, além as pessoas
Muito além dos sistemas, bem além dos problemas
Eu vi uma luz nas páginas velhas
Um nome, Jesus, chegou primavera

A flor se abriu, meu amor sorriu
Minha filha cresceu e me viu feliz
Fiz essa canção, toquei coração
Ninguém disse que não, estou livre e feliz


8 - Paz

Não posso me lamentar
Não posso me arrepender
Senti uma dor no peito
Foi forte, antiga e sem jeito

No passado faltamos respeito
Brigamos e eu tive desejos
Pensei mal, aceitei seu beijo
Não vou te julgar

Pois você não está aqui
Não pode mais me responder
Por isso não posso me lamentar
Não posso me arrepender

Estou aqui procurando nas lembranças, nas memórias
Momentos, fragmentos de um dia, se fomos felizes
Resquícios, restos, tão pouco sobrou dessa amizade
Que seria diferente se fosse de verdade

Eu tremo, tento chorar, não consigo, não vou fingir
Nunca fomos amigos, mas, te desejo que siga em paz


9 - Dois dentinhos

Sei que ainda é cedo, você só tem dois dentinhos
Mas nunca é cedo pra se preparar
Quero te ensinar direitinho
Porque é assim? Será que eu sei te dizer?
Você já é capaz e já pode me ouvir
Então vou dizer:

O mundo é cruel, mas a vida é bela
Existem as bruxas e as cinderelas
As vezes o dia escurece demais
E as vezes é noite do lado de trás

Tudo é linguagem, é imaginação
Raiz da razão e emoção, porque não?
Tudo é muito simples, tipo código binário
Segredo de armário, foto e vídeo do primário

Segredos do universo que cabem na palma da mão
Ideologias que guerreiam como um dragão e um anão
E a luta de classes, entre as classes, e na classe da escola
Enquanto poucos fazem o bem e tantos vivem de esmolas

Tá ficando complicado, não fique com medo
É comum sentir assim, sede, fome e desejos
Mas talvez seja cedo pra se preocupar tanto assim
Pois você só tem dois dentes, o melhor é ir dormir

Todas as perguntas tem respostas
Mas nem sempre são aquelas que queremos
E o desejo de continuar buscando
Nos empurra a continuar crescendo

Como seus dentes que um dia cairão
E outros novos ainda nascerão
Mas se não cuidar, vão se corroer
E se estragar, ainda dá pra mastigar, com dentadura


10 - Pra sempre

Gosto tanto de você, lavo louça, varro o chão
Gosto tanto de você, que nem ligo pra televisão
Gosto tanto de você, faço coisas sem sentido
Gosto tanto de você, meu coração está te sentindo

Eu faço bolo de laranja, mas nem sempre fica bom
Eu te encho de carinhos, e você me diz “que bom”
Fico confuso, atrapalhado, refletindo e pensativo
O que será que você quer? Sou seu amante e seu amigo

Vamos passear no shopping e ver filmes de terror
Ver vitrines, livraria, lanche e coca meu amor
Eu te amo tanto, tanto, você pode acreditar
Toda noite do meu lado, você pode descansar

Me conta tudo do seu dia, chora, grita, me anima
Sabe que estamos juntos, foi “pra sempre” aquele dia
Você gosta do meu jeito, faço coisas de propósito
Pra fazer você sorrir, faço isso porque gosto


11 - Divindade

Eu tentei medir, estudei e fiz meus cálculos
Mas antes eu senti, por isso decidi entender
Comparei com outras coisas e até encontrei semelhanças
E continuo procurando nas minhas notas e nas lembranças

Fui a quatro cantos de uma terra redonda
Fui aos céus, norte, sul, e ao inferno, vai, me zomba
Pois eu quis saber, não tive medo de perguntar
Não consigo me enquadrar, tenho que me libertar

E quebrar as regras da equação humana divina
Ultrapassar os limites da fé, para dentro ou para cima
Ou então buscar em volta, em cada coisa natural
O dilema tão antigo desde sempre, o bem contra o mal

Não são só rituais, nem sempre sobrenaturais
Não é só nossa herança, patrimônios culturais

A alma no gesso, a vida no quadro
A essência na canção, a voz no coração
O espírito livre e um corpo liberto
São apenas uma parte daquilo que é eterno

Não cabe dentro de uma caixa
Não pode ser trancado numa sala
Não pode se limitar a um livro
É maior, bem maior do que imagino


12 - Herói

Todos os medos podem ser superados
Tudo depende de como a gente vê
Sempre há pelo menos duas escolhas
Mas não é sempre que a gente deve escolher

Eu já pensei que tinha perdido tudo
Mas estava olhando pra o lado errado
Pois tudo que ganhei, e hoje tudo eu sou
É muito mais, muito mais, que tudo que já foi

Já não estou mais sozinho, nós agora somos três
E é por elas, muito mais por elas que eu sou o que sou
Eu destruo as muralhas e esmago as baratas
Luto contra os exércitos e descasco as batatas

Sou super herói, sei que nem sempre tão super
Mas sempre herói e é isso que é super
Tenho a habilidade de fazer alguém feliz
Mesmo quando estou triste eu persisto até sorrir

Dentro do medo, escondido no escuro
Mora um monstro, em cima do muro
Mas tem que ter coragem e ser um herói
Para acender a luz, e vencer as vezes dói


13 - O rebelde, o revolucionário, e a liberdade

Todo mundo já lutou ao menos uma vez
Pra ser livre de um lugar ou de algo que fez
Umas lutas são sangrentas, outras são as escondidas
Mas se não são pra libertar, são pra aprisionar

Liberdade é um conceito, nem sempre bem aplicado
Há quem diga que é patrão, mas não vê que é empregado
É um sistema vicioso, injusto, sujo, tendencioso
Para muitos a vergonha, para outros, orgulhoso

E é no meio desse caos que eu não sei quem sou
Sou um revolucionário, quero a ordem do amor
Ou sou apenas um rebelde com causas tão pequenas
Qual dos dois que eu sou? Quero liberdade apenas

Revolução em nome da justiça
Rebelião contra minha própria cobiça
Libertação de um compromisso que não é meu
Sair da prisão, como iguais, você e eu

O revolucionário é herói de padrões elevados dos demais
O rebelde é livre e capaz, luta por algum centavo a mais
Qual dos dois que eu sou? Posso ser os dois
Como vão me chamar? Sou algum dos dois

Hoje sou rebelde, mas amanhã provocarei uma revolução
Sou livre para isso, não trairei minha mente e coração
Mas se já há uma revolução, e nela eu luto e insisto
Mesmo mal visto, evoluí, eu acredito


14 - O que sei

Eu não sabia que existe o amor
Mesmo onde não se pode imaginar
Mas eu sabia que o amor de verdade
É uma escolha difícil de aceitar

Eu não sabia que a maioria das pessoas
Com quem gostamos de conversar
São aquelas que sabemos
Que nunca vão nos confrontar
Mas eu sabia que amigos de verdade
São aqueles que não mentem pra nós
E nos dizem que a verdade nem sempre é
Aquilo que queremos ouvir

Eu não sabia que existe paz
Mesmo quando se está em guerra
Mas eu sabia que os maiores conflitos
São aqueles que travamos dentro de nós

Eu não sabia que era possível
Envelhecer dez anos em doze meses
Pois não se deve medir apenas quantidade
Mas a intensidade da vida
Eu já sabia que nem todo mundo
Sente o tempo igual
Mas não faz mal, pois no tempo certo
As flores brotam no quintal

Eu não sabia em nome do bem
A gente é capaz de fazer o mal
Mas sempre desconfiei
Que é coisa humana
Isso de ser infernal

Cada dia que passa
Eu penso que sei mais
Leio livros e escrevo teses
Pra tentar explicar a vida
E mesmo com tanto saber
Apenas o que posso afirmar
É que sinto que nada sei
Mas ao menos isso eu sei que sei


15 - Na sala com as mariposas

Hoje foi diferente
Alguém me ofereceu um café
E um lugar pra sentar
Caminhei e atravessei na faixa
Tropecei e engoli a fumaça
Mas sentei ao lado do meu amor

Conversamos um bom bocado
E o bom de não termos cunhados
É que dividimos nossos segredos só pra nós
Uns tem hábitos noturnos
Outros flácidos noutros turnos
Desde a lua até saturno, sem fim

Mariposas, casadas, solteiras, ficantes
São tias, amigas, amantes, estudantes
São mães, são avós, são filhas, são gestantes
São esposas, mal amadas
Largadas, perdidas
Voando desesperadamente
Em volta das lamparinas
E tentando ensinar
Meninos e meninas

Por quase toda vida
Trancada num casulo
Depois de tanto persistir
Finalmente nasce pra o mundo
Só pra girar em volta de alguma luz
E descansar na sombra que lhe seduz

Hoje eu tomei um café
Na sala com as mariposas


16 - Você

Quem me dera nosso maior problema
Fosse ter que desviar de uma poça pequena
Mas está chovendo forte, tempestade de morte
Nunca conto com a sorte, sobrevive quem é forte

Sigo rumo ao meu norte sempre caminhando
No deserto ou no bosque, e as vezes sonhando
Sou mais forte nos versos, que na vida real
Mas não fujo do perigo, eu enfrento com moral

Dê-me a sua mão, não fique aí no canto
Se levante desse chão, vem e escuta o meu canto
Vamos prosseguir e deixar tudo para trás
Um sorriso sempre surge quando a agonia se desfaz

Sou mais forte com você, não consigo sem você
Só consigo com você, forte mesmo é você

Mesmo que você não consiga enxergar
Aquela luz no fim do túnel, você pode imaginar
E depois das trovoadas sempre vem a harmonia
Pois no fim de cada noite sempre há um novo dia


17 - Máscaras

Você tem muitos amigos
Mas nunca diga seus defeitos
Que eles viram inimigos
Simples causa e efeito

Num belo dia você decide
Acordar e dizer o que sente
E em menos de um minuto
Não é verdade, você mente

Eles querem que você seja só mais um
Concordando sem pensar, só mais um
Você tem que fingir pra ser só mais um
Mas não dá mais pra ser só mais um

Acorde pra vida que existe algo mais
As coisas que disseram tem que ficar para trás
E tudo que você fez, se foi de coração
Então é seu mérito, está com a razão

É hora de enfrentar, olhar além do espelho
Dizer tudo que pensa, será um pesadelo
Mas quando acordar, vai se sentir melhor
Deixa o peso, troca o fardo, assim é melhor

As mentiras atraem
E as verdades me traem
E as máscaras caem
As máscaras caem


18 - À parnasiana

Eu não consigo sintetizar tudo que sinto
Numa forma métrica perfeita em decassílabo
A chave de ouro não existe pra mim
Minha rima não é rica, é da periferia sim

Eu tento ser livre e critico o social
Nunca viro as costas pra o mundo que é real
Minha poesia não tem regras, é marginal
Eu rimo humor com ironia, eu rimo bem contra o mal

A vida não é feita de poesias perfeitas
Mesmo em meio a um lixão posso ver borboletas
E escondidos na gaveta estão as meias e o amor
Mas na mesa o vazio, sem comida e sem sorriso é pavor

Como vou encerrar com este refrão?
Deslocado no tempo não valerá um cifrão
Não é arte pela arte, com papel e dupla face
Mas é arte escrita sonora, se domino, me invade


19 - Casinha na ladeira

Estou cansado, só quero subir a ladeira
Aquecer-me na fogueira no dia mais frio
Banhar-me em água limpa, nem precisa ser piscina
Uma praia ou um rio, mesmo perto de navio

Nem no campo, nem na cidade
Eu só quero ter idade pra sentir felicidade
Nunca só, mas junto aos meus
Numa casinha de verdade, os meus e eu

É tão caro, tudo custa tanto
E não há o que pague o pranto
De um canto a outro canto
Um lamento frio e sem manto

Um quartinho pra dormir sem luxo
Uma salinha pra assistir tevê
A cozinha pra fazer os bolos
E uma rede pra pensar a vida

Vida que custa tão caro é claro
Coisas que custam tão caro é crediário
Um lugar pra encostar a cabeça e dormir
Até amanhecer não tem preço pra mim

Com um violão e um caderno eu faço um momento eterno
Coloco um pouco de coração e no vento vem os versos
Acompanhados dos meus sonhos de uma casinha na ladeira
Pra passar um tempo da vida sempre em boa companhia


20 - Quem é esse cara então?

Não há lei, não há cota
Na senzala ou na roça
Chibatada nas costas
Trem lotado revolta

Jogou pedra na cruz
Beco escuro sem luz
Falta água, falta teto
Falta roupa, falta afeto

Não tem alma, é negro
Seu perfume é veneno
Seu valor é pequeno
Mas por dentro é o mesmo

Hoje é pardo, meio índio
Meio branco, nariz fino
Pés descalços no chão
Come tudo com feijão

Compaixão com amor
Companhia é a dor
Tem o nome americano
E a novela é mexicana

Quem é esse cara então?
É empregado ou é patrão?
É o carrasco, é o algoz
Perseguindo alguns de nós

Somos todos iguais
Diferentes dos demais
Nós não somos animais
Temos cores demais

Não há lei, não há cota
Jogou pedra na cruz
Não tem alma, é negro
Come tudo com feijão

Companhia é a dor
É o carrasco, é o algoz
Diferente dos demais
Mas por dentro é o mesmo

Chibatada nas costas
Pés descalços no chão
Tem o nome americano
Quem é esse cara então?


21 - Herege

Antes era igrejinha, mas agora abriu um bar
Doce forma de energia, ideologia pelo ar
Em todo canto há gente fina, cordialidade é má
No recinto ou na esquina, vende o corpo ou o pensar

Prostituição política e a polícia a guardar
Profissão de fé em pé e sem boné a professar
Padronização na voz e até nas cores das gravatas
Radio e televisão é pouco, entram mesmo é pelas portas

Politização da fé e nas bancadas do congresso
É o progresso e a ordem juntos rumo ao retrocesso
Liberdade não existe quando a dita é dura lei
Patriarcalismo arcaico, Idade Média outra vez

Não percebe quem tem cota, mas religiosidade tem cor
O racismo e o preconceito são conceitos sem amor
Pra amar tem que ter alma, e é triste esse diálogo
Mas não tem a vida eterna que tem parte com o diabo

Mas quem diabos é essa fome que mata meio mundo?
Quem diabos é essa falta de dinheiro aqui no submundo?
Quem diabos é a contradição dessa teologia excludente?
E quem diabos são esses crentes que querem ser presidente?

Antes era um cassino, mas agora é igreja
Tudo rima com cerveja, grana fácil e certeza
Aliados meus não são, nosso Deus não é o mesmo
Eles querem céu de ouro, eu só quero um travesseiro

O tal Jesus foi um bastardo e excluído pelos seus
Mas seu amor trouxe inclusão a tipos como você e eu
Essa ideia é muito sagrada pra transformar em religião
Mas foi isso que fizeram antes
E hoje continuam a tradição

Eu não sou um profissional da fé
É difícil, mas continuo aqui de pé
Dou minha cara pra bater
Quantas vezes precisar
Sim, sou herege até o fim
Mas não cobro pra amar


22 - Febre alta

Enquanto essa febre não me deixa
Eu deixo a imaginação fluir
Não consigo controlar meus medos
E calafrios tomam conta de mim

Confesso que ao perceber a gravidade
Pensei em saúde e também em idade
Alucinação fluente direto da nascente
Sem controle, apenas frio, doente

Fiquei cinza e mais parecia um zumbi
Como nos filmes de morto vivo que um dia ri
Mas não é comédia quando você está no hospital
E um diagnóstico incerto é tudo que tem de real

Febre alta que não passa nunca
Dor na cabeça, no corpo, e frio na alma
Tosse forte que parece arrancar o peito
Falta o ar, mas não falta o medo

Foram curtos dias, mas longos e densos
Foi o amor que me motivou a lutar
Sobrevivi porque tinha pra quem voltar
Voltar e amar uma vez mais
Voltar e amar cada vez mais


23 - Teoria da história

Distanciamento do objeto em questão
Luz direta pra trazer reflexão
Literária e narrativa o foco é tradição
Não posso contar história sem explicar razão

Problematizar os fatos por prazer
Analisar os relatos do viver
Aceitar que toda fonte é água a beber
Nunca saciar a sede de saber

Pré-conceito é pré-juízo e é pré-história
Escrevemos nossa própria história agora
Teoria é fundamentação sem alienação
Método é sistematizar a forma da razão

Manter a inquietação é arte, é ciência
O desequilíbrio é necessário a existência
Manter a história viva é essência, é expressão
Sentir o mundo em volta é humanização

Não sou apenas um contador
Eu sinto a dor
A dor do mundo em transição
É dor de parto
Dor de partir, dor de recomeçar
Dor de fazer história
Há várias concepções da mesma história

História que continua nua e crua
História que esconde e não alivia as tensões
História que não segue em linha reta
História de colapso social
Isso nem sempre é festa


24 - Vento e fogo

É paixão quando não dá pra controlar
É incerta como a indecisão
É o medo da inexatidão

É amor quando dá para entender
É tão certo e ajuda decidir
Não tem medo, é um simples agir

É paixão quando gera a dúvida
É incorreta meio sem razão
É o vento em meio um furacão

É amor quando mostra a direção
Racional que afasta todo mal
É o tempo, é a certeza

A paixão é a dúvida, o amor é a resposta
A paixão é o vento que sopra e devasta
O amor é o fogo que queima e consome
A paixão é o medo de perder a chance
O amor é a certeza ao alcance

A paixão é egoísta e se irrita facilmente
O amor é bondoso, sem rancor e não tem ciúmes
Tantos sentimentos coexistindo dentro de nós
Sabemos pelos livros e pelo que dizem nossos avós
Até parece que amor é bom e paixão é ruim
Mas não são opostos, antes se completam
Pois só é possível amar se antes se apaixonar
É o vento, é o fogo, que devasta e consome
É a paixão, é o amor, sentir Deus entre os homens


25 - Camomila

Não são essas as coisas que eu gosto de cantar
Pois são coisas amargas, tão tristes de lembrar
Deixam marcas na alma, tão profundas a sangrar
Corta o coração e os laços, nem abraços vão restar

Só os restos e os rastros na escuridão ficaram
Não é certo que esses ratos sobre todos nós reinaram
É tão perto a saída, a resposta e a luz
Necessário é ser, e não só ter, como alguns

Não dá mais pra continuar doendo
Tanto faz se continuar chovendo
Aliás, pra que continuar sofrendo?
O melhor é continuar correndo

Sempre em frente enfrentando cada dia um leão
Sempre é triste quando o inimigo é um irmão
Aprender que é preciso se libertar com a razão
E escolher entre um chá de camomila ou de limão

Camomila é bom, acalma a alma e o coração
É ilusão não pensar que o punhal está nas mãos
De quem a gente menos espera, e o perdão
É a única nobreza que nos resta e o dizer não

Por favor, nunca mais use pessoas
Pelo amor, use ações, use palavras
O calor de um coração batendo
É melhor que continuar morrendo

Morrer a cada dia sem razão
É o que há de mais triste de se ver
Isso acontece quando a gente faz
Descaso com o que as pessoas são


26 - Telefone

Enquanto o telefone não toca
Há tanta vida lá fora
Eu aqui dentro esperando
Será que vai tocar?

Enquanto o telefone não toca
Eu penso então mais uma vez
Naquilo que eu quis dizer
No que eu quis fazer

Enquanto o telefone não toca
A hora passa e eu fico tenso
Penso e espero desesperançoso
Não gosto de suspense

Enquanto o telefone não toca
Tanta coisa pode acontecer
Quanta coisa que pode mudar
Mas e se não tocar?

Enquanto o telefone não toca
Eu penso que nada posso fazer
Até que ouço ele tocar
Mas é engano

Certezas, preciso viver de verdades
Braveza, preciso de intensidade
Fraquezas, preciso vencer a vontade
Dilemas, preciso aprender esperar

Pois se o telefone não tocar
Tenho que prosseguir também
Telefone que não toca é mudo
Não vou mais esperar

Se o telefone não tocar
Continuarei mesmo assim
Pois pior que a dúvida na espera
É o comodismo da eterna espera


27 - O piano e o tambor

Uma nota branca, europeia
Embrião na Idade Média
Padrão, inquisição, patrão
Cartesiana, sem suingue então

Partitura é parte dura
Ordenada por batuta
Escravizando os sons
Manipulando os dons

Disseram “música divina”
Criaram inferno na esquina
No centro só a perfeição
No templo controle e devoção

Que dizer então da liberdade?
Com muitas mentiras sou verdade?
Qual a semelhança entre som e timbre?
Vêm de dentro e fora e no tempo imprimem

De um lado o piano, e do outro o tambor
Tantos sentimentos, desde o ódio ao amor
Padrão no papel, mas vibrando ao vento
Alma musical de tormento e alento

Música que sente, música que mente
Música que entende, música coerente
Trilha sonora da vida, trilha na selva perdida
Caminho perdido sem guia
Procurando sempre o tom maior

Menor não existe, é relativo
Música fabricada é igual na pauta
Mas feito a mão nada é igual, nem flauta
Improvisação sem saber o tom
Ou imposição de modos gregos?
Controle completo nos dedos
Ou disritmia no coração?

O que é a música?
É a arte de expressar os sentimentos
Através da combinações de sons?
Ou é apenas sentimento e linguagem
Necessidade de comunicação?
O que é a música?
Som sim, som não?
Som sim, som não
Som


28 - Amplificação

Sinto o peso nas costas
Falta o ar nos meus pulmões
Não vou olhar pra trás
Sinto pedras debaixo dos pés

Vejo todos em volta
Ouço muito do nada que dizem
E se fecho os olhos
Só amplifico toda a sensação

Às vezes quero desligar o mundo
Mas o tempo não deixa
Às vezes quero desistir de tudo
Mas o amor não me deixa

Quero entender o futuro
Mas a previsão não me deixa
Quero resistir a tudo
Eu consigo, mas não me deixa

Olho pra ela e vejo o melhor de nós
Será que pra ela deixaremos um mundo melhor?
Melhor que nossa infância sem celular?
Melhor que nossa crença de alienar?
Melhor que nossa herança de aprisionar?
Melhor que nosso vício de dissimular?

Sinto o peso nas costas...


29 - Em canções

Não sei se é tristura
Talvez seja alegreza
Não sei se é amargria
Acho que estou confuso

Todos estão mudos
Acho que estou surdo
Ninguém consegue ver
Mas sei que todos sentem

Todas as palavras
Perdem o sentido
Ou tomam outros rumos
Quando as transformamos
Em canções


30 - Labuta

Na vastidão do campo
Ou na periferia da cidade
São tantos que ainda criança
E outros de idade

No geral compartilham crenças
Com algum respeito as diferenças
Há quem cure doenças
Há quem aplique sentenças

São juízes, advogados,
Comerciantes e abastados
Do outro lado pobres desesperados
Trabalhadores desempregados

Há quem nasceu em berço de ouro
Veste linho fino e couro
E há quem vive de brechó
Aluguel e crediário, que dó

Na essência são iguais
Não são deuses, são todos meros mortais
Mas há quem se vê como superior
Acreditando que são mais

Mais humanos, mais cheirosos
Mais espertos, mais despertos
E que os outros são objetos
São dejetos que protestam

Que há uma nítida separação
Entre os que são e os que tem
E é diferente quando se nasce
Com oportunidade ou sem

Mas há algo que não se pode mudar
É algo que vem de dentro
Pode chamar de dom, carisma
Caráter, habilidade ou talento

Tem gente que é bom de bola
Tem gente que é bom de escola
Há quem compre e há quem vende

Mas só o operário entende
Que no campo o na cidade
Seu lugar é no batente


31 - Arte cristã contemporânea

Durante toda nossa história
Sempre houve ao menos dois lados
Os que se vendem com mentiras
E os que são humildes de verdade

Dura é a realidade e difícil discernir
Onde começa a ação e onde termina o agir
São tantos dons, tantas habilidades
Mas como conduzir sem perder liberdade?

Há quem cure, quem pregue, quem ensine e quem segue
Há quem cante, quem toque, quem dance e quem rege
Há quem sirva, quem sinta, quem insista e quem persiste
E há quem ministre, quem resiste, quem com fé nunca desiste

Diversas são as habilidades
Mas só fará sentido se as possibilidades
Forem as mais diversas possíveis
Que visem sempre o bem como prioridade

É como um corpo perfeito
Que cresce bem ajustado
Sincronismo de cada membro
Em trabalho bem planejado

Não se pode prender, não se deve podar
Tantas habilidades deve-se aproveitar
Onde houver essa diversidade no corpo
Deve haver um só espírito que nos torne um todo

Onde houver diversidade
Haverá também potencialidades
E onde houver o espírito
Então haverá liberdade


32 - Ciclos

Amanhã iniciarei meu regime
Depois de amanhã me inscreverei no time
Semana que vem começo planejar aquela viajem
Daqui um mês vou impedir que as contas atrasem

Amanhã marcarei dentista
Depois de amanhã falarei menos mentiras
Semana que vem mudarei o corte de cabelo
Daqui um mês tentarei aquele novo emprego

Amanhã pensarei mais no futuro
Depois de amanhã descerei de cima do muro
Semana que vem não terei mais medo do escuro
Daqui um mês usarei mais a espada que o escudo

Amanhã ainda não chegou
Depois de amanhã parece nunca chegar
Semana que vem nunca chega, estou preocupado
Daqui um mês faço de novo aniversário

Amanhã, tempo que ainda não existe
Depois de amanhã, tempo incerto que menos resiste
Semana que vem, não sei ao certo o que pensar
Daqui um mês, é muito tempo pra esperar

Amanhã é sempre um projeto no papel
Depois de amanhã a abelha nem ao menos fez seu mel
Semana que vem a previsão já diz que vai chover
Daqui um mês uma nova página no calendário vai correr

Amanhã, extensão daquilo que faço hoje
Depois de amanhã, consequência daquilo que fiz ontem
Semana que vem, tempo demais pra esperar acontecer
Daqui um mês, termina o ciclo e começa tudo outra vez


33 - Liberdade

Eu vejo o que você pensa
Não precisa dizer, é só agir
Eu leio quem você é
Não precisa me contar
Basta se posicionar
Eu já sei o que você vai dizer
Pode ser em qualquer idioma
Eu leio suas ações
Sei o que está pensando agora
Que eu sei demais, você é previsível

É interessante ouvir você
Perceber como tudo se repete
Se continuar fazendo do mesmo jeito
As chances de mudança se perdem
Você não precisa continuar assim
Alimentando essa máquina com sua rotina
Você precisa ter coragem
Olhar além das cortinas
Ver que existe outro mundo, sim

Saia da caverna e veja a luz
Existe muito mais que essas sombras
Garanto que quando ver o que está lá fora
Tentará libertar os outros, levá-los embora

Quando encontramos a libertação
Saberemos que ela é real se for maior que nós
Pois a liberdade tem uma força que desata nós
Quebra correntes e nos deixa ver
Nos impulsiona andar e compreender
Criticar, questionar, participar pra melhorar
Só quem é livre de verdade entende
O que estou tentando expressar


34 - Acordei

Eu quebrei o padrão
Enfrentei o patrão
Segui minha intuição
Disse não a prisão

Venci meus medos
Acabei com os pesadelos
Me entreguei aos meus desejos
E senti paz

Não é desumano querer ser tão humano
Não posso espiritualizar aquilo que é profano
Não posso inverter a ordem da razão
Preciso que faça sentido, mesmo se digo não

O destino não existe
Apenas causa e efeito
Tudo na vida se repete
Sempre percebo quando vejo

Há quem prefira não ver
E acredita ser feliz assim
Mas isso não é pra mim
Eu vi o amanhecer

O sol brilhou e havia ruínas
Meninas e senhoras prostituindo-se na esquina
Assalariados escravos sustentando o império do capital
Não vivo nos sonhos, acordei e isso é real

Pessoas sofrem enquanto assistimos tevê
Crianças morrem antes mesmo de nascer
Que mundo estamos construindo? Não sei você...
Eu quero um mundo mais justo, pra ao menos sobreviver

É possível ser o padrão, o patrão, de uma instituição,
Sem que ela seja uma prisão?
Não pode existir padrão
Para não haver servos também não deve existir patrão
Nem tudo deve ser instituído
Quem pode afirmar o que é certo ou proibido?


35 - Desejo

Já desenhei em papel de pão
Rabisquei entre as lições do caderno
Rascunhei céu, terra e inferno

Já trabalhei fazendo desenhos em quadrinhos
Ilustrei artes de grandes formatos
Fiz dragões e unicórnios, também cães e gatos

Manipulei os pixels numa ilustração digital
Tanta coisa que nem saiu da tela
Desenhos incríveis, coisa e tal

Propagandas políticas e cardápios
Lápis, giz e carvão no asfalto
Caneta, mouse e pincel na tela

Mas agora quero outra tela
Uma que envelheça de forma diferente
Quero fazer tatuagem em gente


36 - Enquanto

Enquanto eu tomo banho
Você tira um cochilo
Você toma iogurte puro
Eu tomo com sucrilhos
Gosto dos filmes de ficção científica
Você gosta dos de vampiro
Você gosta de dirigir
Eu tô mais pra andarilho

Enquanto escrevo esses versos
Você come chocolate
A gente anda tão cansado
Que a fraqueza nos invade
O que será do amanhã
Parece que nem Deus sabe
A gente precisa espairecer
Mas não dá, você sabe

Enquanto os enquantos
E quando os encantos
E quantos os cantos
Nós vamos cantar
Um canto sofrido
Um tanto gemido
Som meio sem brilho
Enquanto cantar
Enquanto durar
Enquanto


37 - Esperança

Vamos passear no parque
Sentir o perfume das flores
Esquecer por um instante as dores

Vamos cantar aquela canção
Aquela que aquece nosso coração
Nem precisa banda, só voz e violão

Vamos lembrar daqueles dias
Que fizemos planos pra conquistar o universo
Ainda que isso se torne real apenas nesses versos

Vamos nadar contra a correnteza
Fazer valer nossa certeza
Transformar em alegria nossa tristeza

Vamos assistir um filme
Pipoca, guaraná e fanzine
HQ, teatro, dança e anime

Vamos passear no jardim
Mas também vamos marchar em protesto
Colocar a vida em risco num simples gesto

Vamos mergulhar no mar de gente
Sentir a dor do outro na gente
Pois só assim a gente vai pra frente

Vamos deixar o medo em casa
Sair e lutar por nossas crianças
Porque para nós não há mais esperança



38 - Politicagem

O anacronismo desta crônica
É como uma doença crônica
Em que o conjunto de sintomas
Certamente leva ao coma

Pode ser induzido
Com gemidos e ruídos
Mas não se pode entender
O que não se pode ver pra crer

Fantasias e fantasmas
Falsos profetas e fadas
Pilantras políticos e promessas
Desigualdade social e reza

Democracia velha falida
Congresso, senado, todos corruptos
Bancada evangélica de mãos sujas
Entre estes santos, vários Judas

Tantos partidos, quebrados, rachados
Tantos políticos, desonestos, bandidos
Mostram na mídia sua boa ação
Mas tudo não passa de televisão

Tarde de domingo, programa de auditório
Aos excluídos sociais nada sobra, só velório
Em breve eleições, voto obrigatório
Já é hora do político, veja em seu relógio

É anacrônico o que querem nos dizer
É hipocrisia o que tentam nos mostrar
E novamente iremos eleger
Alguém que se quiserem irão tirar


39 - Acima dos ritos

São tantos livros que preciso ler
Além dos filmes que preciso assistir
Filtrar mentiras e mensagens ocultas
Decifrar verdades em palavras curtas

São tantas regras para seguir
Tantas doutrinas para digerir
O meu caminho é uma paisagem
Ou talvez seja só uma passagem

Dias de luta e decepção
Noites em claro, medo do não
É mais pelo medo, que pelo amor
Mas eles dirão que é pela dor

Cadeiras vazias, famílias frustradas
Profissionais da fé desempregados
A crise da sociedade não poupa ninguém
Mas precisamos dar um passo ao além

Quais são os milagres que queremos ver?
Não é suficiente um cego enxergar?
Difícil mesmo é um religioso entender
Que para além dos ritos é preciso aceitar

Que a santa ceia é o querer bem e perto
Que o dízimo e a oferta é o repartir com o próximo
Que o batismo é a escolha de um caminho
E a maior das escolhas é decidir ser livre

Cansei desses apóstolos de tevê
Dissimulam e nos tornam em números
Números, Levíticos, chega de Velho Testamento
Afinal Jesus foi crucificado para uma Nova Aliança, ou não?

É estranho quando no novo há tantas continuidades
E mesmo agora, mais de dois mil anos depois
Querem que vivamos como na antiguidade
Não quero, não posso, acima dos ritos escolho a liberdade


40 - Quem eu sou

Só quero ser quem eu sou
Não ter que provar nada a ninguém
Poder falar das coisas que penso
Mas sempre machuco alguém

Me afastar das pessoas
Principalmente das que me fazem mal
Me achegar as pessoas
Que me abrigam no temporal

Usar as roupas que gosto
Escrever o que penso no que posto
Olhar nos seus olhos e dizer
Que não serei como você

Só quero ser quem eu sou
Seguir minha própria religião
Lutar minhas lutas contra a prisão
E ensinar sobre alienação

Só quero ser quem eu sou
Ter fé na minha própria utopia
Sem ela sei que eu jamais seria
Assim como sei que eu sou

Eu sou tudo que quero ser
Ainda serei o que me desejo ser
Eu serei mais forte do que já sou
Ainda mais forte serei nos dias que virão

Eu sou eu, quem eu sou?
Sou eu quem, sou quem sou
Sou o único sendo assim
É assim que sou


41 - Próximo

Encontrei o meu lugar
Entre um ponto aqui e outro acolá
Respondi minha questão
Não disse sim nem disse não
Resolvi te encontrar
Te vejo aqui, não sei se lá

Existem várias formas de viver pra sempre
Uns crêem que é em cima
E outros que é seguindo em frente
Existem muitas formas de ser lembrado
Por escrever um livro
Ou simplesmente pelo que faço
São tantas crenças que vão até o além
Mas a eternidade é aqui também

Não sei se vou pra o céu
Não sei se serei réu
Mas vejo além do véu
Preciso ser fiel

Buscando o meu caminho
Talvez a gente se veja por aí
Enquanto estiver nos trilhos
Haverá sempre a próxima estação

A próxima página do livro
A próxima vida nos filhos
O próximo céu depois do céu
O próximo depois do que virá
Mais próximo de você

42 - Leia antes do mundo acabar


Começou com um beijo na esquina
Uns dois anos depois nasceu uma menina
Logo ela completará três anos de idade
Quanta coisa mudou desde então nessa cidade

Queria construir um mundo melhor pra ela
Tornei-me professor e acreditei que a vida podia ser bela
Em uma sala de aula com quarenta alunos
Talvez salve quatro ou cinco
Infelizmente o restante caminha rumo ao abismo

A minha fé saiu dos templos e foi para as ruas
A minha revelação é o resultado das urnas
Os meus discípulos são os que aprendem com meus erros
E a minha cruz é a salvação que desconheço

A minha geração já vive o fim do mundo
Decadência do sistema de educação nesse governo imundo
O que me resta é ensinar a minha filha
Que estamos todos condenados nesta ilha

Espero que um dia ela encontre alguém pra beijar
Alguém dentre os quatro ou cinco que salvei
E juntos tenham força e sabedoria pra lutar
Pela liberdade que um dia eu também lutei

Filha, sua mãe e eu um dia ficaremos velhos e fracos
Mas nunca desista da vida, analise bem todos os fatos
Tenha fé, persista, renuncie, denuncie e lute
Use a nossa experiência e continue firme
Mantenha a resistência


43 - Antes do fim

Antes do fim quero ter tempo
Tempo de dizer todas as coisas
Coisas importantes as pessoas
Pessoas com quem me importo mais que coisas

Antes do fim quero chegar
Chegar antes do final da sessão
Sessão da tarde, sessão de terapia
Fisioterapia, cromoterapia, quimioterapia

Antes do fim preciso saber
Saber se tudo pelo que lutei valeu a pena
Pena de morte, sentença assinada
Nada mais poderá mudar a sina, nada

Antes do fim será o último capítulo
Últimas páginas, final do livro
Antes do fim, ah, antes do fim...

Não, depois do fim, sim
Depois do fim as coisas novas
Novas concepções, novas contradições
Tradições, novas lendas, mitos, religiões

Depois do fim o recomeço
Começo de uma nova era
Era uma vez uma história
Pré-história, Idade Moderna, Idade das Trevas

Trevas até que haja luz
Luz no fim do túnel
Túnel do tempo que passa
Passado que fica pra trás

Trazendo hoje o que sei
Sei que sinto que sou
Serei enquanto ainda for
For forte até depois do fim
Antes do fim


44 - Ainda resta a poesia

Quando tudo acabar e vier o fim
Pra uns o apocalipse, pra outros o recomeço
Tudo volta ao princípio ou avesso
Uns nascem de novo, eu sinto que envelheço

Os escombros escondem a história que se foi
As belas ruínas iludem contentando alguns
Mas o poeta está atento, sabe que nada material resta
Intrigante memória, coração acelerado, suor na testa

Do pó ao corpo, do corpo ao pó
A esperança e a dor nunca caminham sós
As diversas crenças lutam dentro de nós
E no final só não queremos a dor, nem estar sós

Impotência, influência, a incoerência de existir
O ser, o não ser, a dúvida do porvir e do devir
Vida após a morte, vida em vida já é sorte
Paraíso, terra, inferno, primavera, verão, outono, inverno

Uma guerra nuclear em cada núcleo celular
Um mundo conectado e cada vez menor
Corações dilacerados e o desastre da civilização
Ouço choros, gritos, guerras, e talvez uma canção

Mesmo que por fora haja apenas o improvável
Que nada seja certo, nem mesmo o que se espera
O poeta olha para dentro e explode sua agonia
Nesse momento ele percebe que ainda resta a poesia


           Sobre o autor:

Kiko Pietro ou Francisco Pedro da Silva nasceu em 18 de junho de 1974 no Rio de Janeiro. Formou-se em Teologia pelo IBBC em 2012; licenciado em História pela FIG-UNIMESP em 2015, com carga horária para lecionar Geografia; Pedagogo pela UNINOVE em 2017 e Educador Social pelo SENAC em 2018.
Casado com Ana Paula Lucinari e pai de Pietra Lucinari da Silva. Trabalha na área da educação e da arte, participante e organizador de eventos culturais como saraus e palestras. Desenvolve um projeto musical chamado “Projeto CLIO”, onde utiliza como parte do repertório algumas poesias deste livro, e em 2019 iniciou um trabalho de musicalização infantil com sua esposa.

Contato:

E-mail: francispietro@gmail.com
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